Obra

O dia a dia dos trabalhos, a opinião técnica, os desafios da restauração, as epifanias da arquitetura — nesta página, você poderá acompanhar de perto a evolução das obras do Museu Vassouras.


CASA DAS IRMÃS

Detalhes de anexo ao prédio onde funcionará o Museu Vassouras, conhecido como “Casa das Irmãs”, foram captados por William Britto em uma gravação de vídeo. Nas imagens, é possível visualizar três fases da obra. Para ver a gravação em 360º, clique aqui.


TELHA A TELHA

Da Redação

Em sua primeira visita ao prédio onde funcionará o Museu Vassouras, o arquiteto Maurício Prochnik percebeu que as estruturas de sustentação do telhado — quase completamente destruídas após anos de abandono e um incêndio de grandes proporções — necessitavam de medidas urgentes.  A solução, criada e desenhada pela equipe de arquitetura do Museu, é um trabalho inédito no Brasil.

(Assistam abaixo ao vídeo com a evolução da reforma do telhado)

Palavra de arquiteto:  

— Foi feita a concepção para um telhado altamente resistente às intempéries. A estanqueidade é a coisa principal para uma indicação como essa, vedar a entrada de água, ainda mais em um imóvel que servirá a um museu. Criamos uma estrutura metálica e sobre essa estrutura montamos um telhado metálico, com isolamento acústico e térmico, e sobre esse telhado nós colocamos as telhas de cerâmica, as telhas de canal e as telhas francesas, no caso das Casa das Irmãs (anexo do prédio, em formato quadrangular, à esquerda nas imagens do vídeo). É um telhado gabaritado, mantendo o volume, a geometria, o desenho e a altura dos telhados originais. Com isso, quem olha de fora vê um telhado totalmente histórico, totalmente no formato, desenho, ângulos, configurações, quedas, etc e tal, tudo como o original, só que por baixo disso temos uma tremenda proteção. Caso quebre uma telha, a água jamais cairá dentro do ambiente, ela vai para fora. Além disso, eliminamos o uso da madeira na estrutura toda de telhados, medida tomada por conta do alto grau de contaminação por diversos tipos de cupins. (Maurício Prochnik)


Paredes que contam histórias

Projeto do Museu Vassouras dá novos significados ao antigo prédio do Hospital da Santa Casa de Misericórdia de Vassouras

Por Renato Lemos

Fotos Marcos Gusmão

Essa casa ou hospital, nós a vimos: compõe-se de dois grandes pavimentos. Sobre o pavimento superior são recebidos os homens e mulheres de cor branca que  necessitam dos socorros da medicina; no pavimento inferior, onde estão organizadas mais duas enfermarias, por conta e despesa do atual Sr Barão do Campo Belo, é destinado a receber a gente de cor preta. No pavimento superior há uma capela onde são celebrados os mistérios divinos que devem curar o espírito ou alma como a medicina cura as chagas da carne. Nesse mesmo pavimento se acha igualmente a casa de banho, a botica e tudo o que pode completar o necessário de uma casa de caridade. A alimentação é modesta, limpa a abundante” (Correio Mercantil, 1855)

Na primeira vez que entrou na parte de baixo do prédio que abrigará o Museu Vassouras — aquela parte inicialmente destinada à gente de cor preta, segundo o relato publicado no jornal Gazeta Mercantil — o arquiteto Maurício Prochnik percebeu a gravidade da situação, o que provocou duas reações aparentemente antagônicas: susto e deslumbramento. Naquele momento, mesmo diante do estado precário de tudo que via, fruto de anos de abandono, má conservação,  ação implacável das chuvas, de cupins e de um incêndio de grandes proporções,  o arquiteto percebeu que, após “salvar” o prédio, muitas possibilidades se abririam à sua frente:

— Foi um sentimento de esperança ter a chance de dar vida àquilo, de transformar aquele conjunto quase destruído em um equipamento cultural de grande impacto. É um desafio que instigaria qualquer um – conta Maurício – Tínhamos que projetar novos espaços, mas preservando parte da história do imóvel. É um prédio muito importante e muito presente  na vida da cidade e que estava abandonado à vista de todos. A restauração e ressignificação de um prédio desses podem ser simbólicos do resgate da autoestima de toda a comunidade. 

O prédio foi erguido há mais de cento e cinquenta anos e sua presença na parte alta da praça Barão do Campo Belo sempre foi referência para a cidade. Ali funcionou o Hospital da Santa Casa (mantido por uma irmandade financiada basicamente pelo dinheiro dos barões do café) e, a partir de 1910, o Asilo Barão do Amparo. O declínio econômico da região, a falta de investimento no patrimônio histórico, o abandono pelo poder público e um incêndio, em 2011, que fez desabar parte de sua estrutura, transformaram o prédio em uma espécie de ruína na paisagem da cidade.

A ideia de estar diante de um prédio em estado emergencial motivou o coordenador geral do projeto Museu Vassouras, Mozart Serra, a tomar uma decisão imediata: as ações de reparo do prédio – escoramento, descupinização, proteção externa, substituição do telhado – seriam iniciadas antes mesmo do primeiro traço do projeto arquitetônico chegar ao papel. O estado das paredes de adobe, do telhado, do assoalho, do madeiramento, das estruturas e das cintas pedia por medidas urgentes. Era necessário trocar o pneu com o carro em movimento:

— É mais ou menos como uma caixa de sapatos, se você não firmar o piso, as paredes e o telhado, a caixa desmorona — diz Mozart, economista com passagens no Banco Mundial, em Washington, mas também arquiteto de formação, paixão que cultiva até hoje. — A ideia de refazer a estrutura do telhado com ferro e fazer um telhado duplo, em que as telhas respeitassem a cerâmica original na parte externa, foi brilhante e fundamental. Ali a gente começou a enxergar o nosso museu.

As obras de restauração e construção do MVV, contratadas com a Concrejato, do Rio, começaram  ainda em 2018, logo após a compra do prédio. A parte externa — toda ela tombada pelo IPHAN — aparentemente em melhores condições, dava uma falsa impressão sobre o estado geral do conjunto. No período em que funcionou como Asilo Barão do Amparo, o prédio ganhou anexos que não respeitavam mais o projeto original. Dali pra frente, uma série de “puxadinhos” descaracterizou ainda mais o imóvel.  Era necessário “escavar” a superfície para descobrir todas épocas e mudanças do prédio, buscar os traços, os materiais e os acabamentos originais.

Além dos problemas expostos em uma primeira olhada, o casarão guardava danos estruturais que vinham desde a sua construção, como se vê em carta endereçada à assembleia da irmandade mantenedora da Santa Casa de Vassouras, apenas dois anos após a inauguração do hospital:

Quanto ao estado material do estabelecimento, longe de ser satisfatório, é desanimador, pois que a Mesa vê-se na precisão de acudir quanto antes aos telhados do edifício que a abundância das chuvas tem deteriorado a ponto de ser necessário fazer lhes um conserto bastante dispendioso. A casa que serve de cozinha igualmente ameaçando ruína, carece uma reforma que importa quase o mesmo que uma edificação nova”.

Recuperar uma estrutura há tanto tempo negligenciada, para que os operários (são cerca de 40 trabalhadores diariamente no local) pudessem trabalhar com segurança, além de firmar as fundações para construção de novas perspectivas para o prédio, eram o desafio inicial das obras. Isso tudo mantendo a volumetria do imóvel e sem perder as referências históricas e as memórias do lugar. A opção por incorporar as diversas narrativas temporais de um imóvel para fazer sua nova versão é o que existe de mais atual na arquitetura. Mozart Serra destaca que o trabalho dos arquitetos franceses Jean-Philippe Vassal e Anne Lacaton, vencedores do prêmio Pritzker de Arquitetura em 2021, vai por esse mesmo caminho:

— Eles defendem soluções que, em vez de destruir o que existe para criar algo novo, preferem as adaptações. É o que estamos fazendo. Um prédio como o que estamos trabalhando tem que manter as indicações de seu passado, sua memória anterior. Nisso o projeto do Maurício Prochnik é exemplar — analisa Mozart. 

São camadas e camadas de intervenções até que se chegue aos traços e aos materiais primários.  Os muros de pedra — resistentes e de traçado belíssimo — ficarão onde sempre estiveram. As paredes de pau a pique são inspiração para novas divisórias. As esquadrias das janelas tiveram que ser refeitas por artesãos especializados contratados no Rio de Janeiro. Elas são apenas uma parte visível do trabalho. É como se a cada momento da obra fossem reveladas novas histórias do prédio. Cores, tintas, texturas, materiais, desenhos: tudo diz algo sobre a construção. O arquiteto Thiago Thuler, 33 anos, há dois anos e meio na linha de frente da reforma, diz que recuperar a essência do que foi o prédio é fundamental:

— Não usamos cimento na obra, é uma argamassa de cal com areia, própria para revestimento em restauração. E não é só isso, as paredes nos contam muitas coisas. Todos os dias, quando ponho meu capacete e entro no terreno da obra, sei que vou me surpreender. Isso é muito estimulante.

Quando for inaugurado, o Museu Vassouras terá cerca de 1.600 metros quadrados, espalhados em dois pisos. Serão salas de exposição, auditório, espaços para aulas, jardins e áreas de convívio. O projeto desenhado por Maurício Prochnik busca fazer o antigo conversar com o novo, o passado com o futuro: 

— A gente não pode querer apagar o que está lá, aquelas marcas. Nem queremos fazer intervenções que deixem tudo asséptico. O que se quer é o equilíbrio. É um imóvel do século XIX que será dotado de tecnologia do século XXI. Saber equilibrar esses dois tempos é fundamental – finaliza o arquiteto.     

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