O historiador Marcelo Sant’Ana Lemos, autor de “O Índio Virou Pó de Café?”, conversa com o MVV e destaca a história, as lutas e o legado dos índios Puris na formação da identidade da gente do Vale do Café
Quando Marcelo Sant’Ana Lemos começou a pesquisar sobre a presença dos indígenas no Vale do Café, buscava saber como teria vivido o povo originário da região – Puris em sua maioria -, suas relações com os fazendeiros locais, suas heranças e, principalmente, o que teria acontecido com eles após a ascensão e queda do ciclo do café. O resultado da pesquisa virou o livro “O índio virou pó de café? — Resistência indígena frente à expansão cafeeira no Vale do Paraíba”, Paco Editorial, 2006.
A resposta à pergunta proposta por Marcelo no título de seu livro não é simples — mas alguns números e estatísticas podem ajudar a entender onde estavam e onde foram parar os indígenas da região antes e depois que o café atravessou suas vidas.
No início do ciclo do café, por volta de 1820, estimava-se que 1.400 indígenas habitavam o Vale do Paraíba. Cinquenta anos depois, no Censo de 1872, 117 pessoas (70 homens e 47 mulheres) foram classificadas como “caboclos”, indígenas que já haviam perdido a sua língua e que viviam como “brancos”. Já no Censo realizado em 2010, que classificava a população pela auto declaração de raça ou cor, apenas 46 pessoas, entre os 34.410 residentes na cidade de Vassouras, se declararam indígenas.
Durante todo esse tempo, os puris foram sendo, de muitas formas, riscados do mapa. Seja pelo assassinato puro e simples, seja pela aculturação forçada, seja pela necessidade de se verem integrados à sociedade. Pelo caminho, deixam o registro de uma cultura plena, de um vocabulário rico e extensivo ao português e de uma história de luta pela sobrevivência — história mantida por aqueles que, ainda hoje, resistem.
— Se a gente fizer um retrato do Vale do Paraíba fluminense de 1780 a 1820, a grande maioria da população ali era indígena. Em 1800, com exceção do Caminho Novo e das sesmarias ao lado, não existiam cidades, mas aldeamentos indígenas, feitos pelos portugueses, e aldeias indígenas. Em 1800, a maioria ali falava línguas indígenas, do tronco macro-jê. Eram os puris, os coroados. As pessoas não têm noção disso. Os índios são os grandes apagados da história fluminense. A gente tem tentado recuperar os fragmentos dessas informações. Porque depois que essas terras foram conquistadas, os antigos donos foram silenciados — afirma Marcelo.
E vai além:
— Durante a pesquisa, vi que havia limitação para achar esses índios mesmo nos arquivos paroquiais. Porque muitos não foram batizados e, naquela época, o batismo servia como registro civil. Então há um apagamento histórico, o território deles é tomado e a resistência foi dissolvida. Há alguns exemplos pontuais de resistência que é possível mapear ainda no século XIX. Mas depois fica uma coisa muito fragmentada, é um indivíduo, uma família. E a história dessa família é perdida porque o cara que registra é o barão que enriquece sobre as terras que foram tomadas dos índios, sobre a riqueza que o café lhe deu com o trabalho escravo e o trabalho agregado de índios. Então a primeira etapa é pesquisar o que está nos arquivos e que as pessoas não queriam nem ver. No caso de Vassouras, a gente está nessa primeira fase. No caso de Valença, conseguimos aprofundar um pouco mais.
Da imersão de Marcelo nos fatos, nas histórias e nos dados estatísticos da região, saiu também o dicionário da língua dos Puris, “Vocabulário Puri — Coleção Semear”, a partir de um apanhado de registros linguísticos feitos por pesquisadores de várias áreas, que vão de Noronha Torrezão a D. Pedro II. É outra importante ferramenta para a compreensão da dimensão da presença indígena na formação do povo do Vale. Do dicionário, algumas expressões resgatadas da língua original fazem cada vez mais sentido, como Ah Lekah (Eu moro aqui), Chinacaçanguê (Mostre-me o caminho), Oh pueráschka (O tempo está ruim) e Bocara me Carecun (Tenho saudades da floresta).
Em conversa com o Museu Vila de Vassouras (parte dela disponível no vídeo abaixo), Marcelo faz um apanhado sobre o processo de invisibilidade do indígena brasileiro, especialmente no Rio de Janeiro. Ele descortina o jogo de interesses que conduziu a “História oficial” até o advento da Constituinte de 1988, quando o jovem Ailton Krenak ocupou a tribuna para reivindicar o direito de o indígena falar sua própria língua, contar sua própria história. Boa parte do interesse de Marcelo na história do povo originário do vale está relacionado a esse momento da vida política brasileira.
Na conversa, Marcelo faz a distinção entre puris e coroados (“Os coroados estão em todo o Brasil e o nome, nascido do corte de cabelo em forma de coroa, por si só não distingue a etnia”), narra batalhas entre indígenas e fazendeiros de café e conta a origem do nome do Rio das Mortes, em Vassouras, perto da velha estação de trem da cidade.
— Em 1789, os indígenas atacaram uma patrulha, roubaram armas e mataram guardas. O nome do rio vem desse evento.
Por fim, Marcelo Lemos, na contramão dos dados estatísticos, revela a existência de um cada dia mais forte Movimento de Resistência Puri na região. Gente que se reorganiza, resgata tradições e busca maior integração com o território de origem. E, provocado a partir do título de seu livro, Marcelo crava:
— O índio não virou pó de café. Não mesmo. Está aí. Muito vivo”.
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