Unicamp disponibiliza jongos e fotografias captadas pelo historiador americano Stanley Stein que ajudam a revelar a história não contada do Vale do Café
(Fotografia: Casa de vivenda. Fazenda São Fernando, perto de Massambará, set. 1948 – nov. 1949.)
Por Rosa de Carvalho
Quase sem querer, o americano Stanley Stein captou alguns dos registros sonoros mais importantes para a cultura brasileira — gravações que viram os holofotes para o que é, muitas vezes, propositalmente escanteado pela História. Por 18 meses, entre 1948 e 1949, Stein e sua família moraram em uma pensão de Vassouras, enquanto o historiador desenvolvia sua tese de Doutorado para a Universidade Harvard. O objeto de pesquisa era a economia cafeeira, sua ascensão e declínio, e o Vale do Café era o marco zero. O contato com as pessoas da cidade, a observação dos ritos diários e, sobretudo, a percepção de uma cultura escondida sob a história oficial, fizeram mudar um pouco a natureza da pesquisa. Ali, na Vassouras da metade do século passado, Stein formatou o clássico Vassouras: um município brasileiro de café, 1850-1900, que estuda a região de dentro para fora, com fortes inspirações antropológicas.
As manifestações culturais são uma espécie de pilar em que se apoia todo o trabalho. Stein, que morreu em 2019, não se ateve a registros históricos e conversas com autoridades. Com um até então raro olhar sociológico, tirou fotografias e falou com escravos libertos e seus descendentes, com pequenos comerciantes, vendedores, trabalhadores rurais para melhor entender a dinâmica entre a Casa Grande e a Senzala.
— Por acaso, Vassouras ganhou um grande historiador para a sua História e para a região. A obra de Stein é muito importante porque não faz só um levantamento da produção de café, da mão de obra ou da economia. Ela faz um panorama geral que se preocupa com as pessoas e coisas cotidianas. — disse Silvia Hunold Lara, historiadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). — Os historiadores brincam que durante muito tempo a História era dos grandes generais, dos políticos e das pessoas que tinham dinheiro. Na época que ele escrevia, a disciplina começava a olhar para os pequenos.
Stein registrou parte das entrevistas em um pesado gravador de fio de arame, à época uma mídia já quase ultrapassada, cedido pela embaixada dos Estados Unidos no Rio de Janeiro. No prefácio do livro, o autor afirma também haver feito “gravações de cantos de trabalho e jongos escravos” — algo que despertou a atenção do etnomusicólogo e diplomata Gustavo Pacheco. Será que essas bobinas de arame ainda existiam?, ele pensou. As entrevistas se perderam no tempo, mas sim, as gravações existiam, Stein disse ao brasileiro em 1999. Ele só não sabia aonde elas estavam.
Até que, no final de 2003, os Correios entregaram uma latinha na casa de Pacheco. Digitalizar o arame provou-se uma odisseia, que só foi possível com a captação de recursos pelo Centro de Pesquisa em História Social da Cultura da Unicamp. A bobina voltou para os Estados Unidos, onde os especialistas conseguiram recuperar 60 jongos — todos cantados em português, mas não raramente com palavras em bantu —, cinco fragmentos de batuque, sete cantigas, uma folia de Reis, um samba cantado e quatro batucadas de samba, gravações que podem ser ouvidas aqui.
O material também deu origem aos livros Memória do jongo: as Gravações Históricas de Stanley J. Stein (ed. Folhas Secas), organizado por Gustavo Pacheco e por Silvia Hunold Lara, e Cangoma Calling: Spirits and Rhythms of Freedom in Brazilian Jongo Slavery Songs (ed. Universidade de Massachusetts, Darthmouth), de Pedro Meira Monteiro e Michael Stone. Fotografias tiradas por Stein durante sua pesquisa, por sua vez, podem ser vistas aqui.
O que havia na bobina era extraordinário não só pela raridade, mas por seu valor para a cultura negra do sudeste brasileiro. Por séculos, o jongo — também chamado de batuque e caxambu — aparece mencionado de forma preconceituosa nos registros de viajantes europeus e seus descendentes coloniais. Não como a manifestação cultural legítima que é, mas como algo exótico, inferior. Em algumas partes do Brasil, as reuniões de jongueiros chegaram a ser proibidas. Em outras, só podiam ocorrer desde que não perturbasse os brancos. Ou apenas com a autorização dos senhores.
O jongo não é apenas uma dança, mas também pontos que as acompanham, formando todo um ritual. Os cantos metafóricos são trocados encadeadamente: um dos participantes lança um verso, que é respondido pelo coro, uma fórmula de pergunta/resposta versada que daria origem, entre outros, ao Partido Alto. A poeticididade era proposital, para que não fossem tão facilmente decifrados para quem era de fora dali. Um bom exemplo é narrado por Stein, que ao perguntar a um entrevistado sobre como a notícia da Abolição foi recebida. Ele respondeu com dois jongos. Um deles dizia ironicamente: “Não me deu banco pra mim sentar; Dona Rainha me deu uma cama, não me deu banco pra me sentar”. Dona Rainha era Princesa Isabel e liberdade só existia nas atas oficiais.
Pelo século XX, historiadores como o próprio Stein e folcloristas tachavam que o jongo estava fadado a desaparecer. Como se não bastasse a repressão, juntaram-se outros fatores como a expansão de religiões evangélicas em comunidades periféricas e a migração. Coisas boas, contudo, também vieram deste último fator: grupos que saíram do Vale do Café e se fixaram na Serrinha, em Madureira e no atual Morro do Salgueiro (onde despontam com destaque os grupos de caxambu), por exemplo, levando consigo o batuque. Não é uma coincidência que décadas mais tarde estes lugares seriam o berço das escolas de samba Império Serrano e Salgueiro, respectivamente.
As comunidades jongueiras contrariaram as previsões, mesmo que aos trancos e barrancos, e resistiram tanto política quanto culturalmente. As primeiras validações vieram com a Constituição de 1988 e a Lei do Patrimônio Imaterial, mas o reconhecimento principal veio 2005, quando o “Jongo do Sudeste” recebeu o título de Patrimônio Cultural do Brasil — o primeiro concedido a uma expressão cultural afro-brasileira do Sudeste. Ainda assim, falta muito para que tenha o respeito que lhe é devido.
— Graças aos movimentos negros, que tem orgulho do seu passado e da sua herança, vemos uma maior valorização do jongo, mas ainda assim não é fácil — disse Martha Abreu, historiadora da Universidade Federal Fluminense e co-coordenadora do projeto “Passados Presentes: memória da escravidão no Brasil”. — Eles têm o título, mas pouca coisa mudou de fato, a desigualdade é imensa. Falta valorização do poder público, falta reconhecimento, apoio.
Deixe seu comentário