De 25 de dezembro a 6 de janeiro, Folias de Reis saem às ruas para celebrar a chegada do menino Jesus; tradição é forte – e pop! – no Vale do Café
“Na folia tem palhaço
Que faz verso e diabrura
Representa o tinhoso
Tentador das criaturas
Mas também tem a bandeira
A Bandeira do Divino
Mais atrás os três Reis Magos
Procurando o Deus Menino
Ô de casa, ô de fora…”
Folia de Reis, Martinho da Vila, 1970
POR ROSA DE CARVALHO
De longe ouve-se o cortejo com seus tambores e cantoria, em festa para celebrar a chegada do menino Deus e a jornada dos reis magos até Belém para presentear o recém-nascido. De porta em porta, guiada por sua bandeira, a Folia divino-profana que se tornou brasileiríssima passa trazendo consigo séculos de fé, tradição e cultura popular, história que acompanha o surgimento do Brasil e das misturas que o formam.
A tradição católica diz que os reis magos eram três, apesar de historiadores afirmarem que o número poderia chegar a uma dúzia — os presentes de Baltazar, Belchior e Gaspar, contudo, teriam sido os mais simbólicos. Levaram, respectivamente, mirra, ouro e incenso, representando a humanidade de Jeus, sua realeza e divindade. Se o mundo troca presentes no Natal, é em parte devido a eles.
Os reis tiveram uma estrela-guia que os levou até o menino Jesus, em uma jornada que termina em 6 de janeiro, o Dia de Reis. É por isso que o Reisado, que no Sudeste é mais conhecida como Folia de Reis, começa no dia do nascimento de Jesus e vai o sexto dia do ano novo. Em algumas regiões, principalmente no estado do Rio os festejos são prorrogados até o dia 20, data de São Sebastião, o padroeiro da antiga capital. Nestes casos, as folias acrescentam em sua bandeira uma figura do santo, e passam também a cantar o martírio de Sebastião.
Durante este período, passam de porta em porta em peregrinação, contando e encenando a viagem dos reis até a gruta em Belém onde estavam Jesus, Maria e José. Os músicos, com seus uniformes de soldados, tocam no ritmo conduzido pelo Mestre, vindo atrás do bandeireiro que carrega o estandarte-marco do grupo. Atrás dele, seguem os coloridos palhaços, que nunca entram nas casas onde os foliões devotos são recebidos em troca de doações ou mantimentos. Famílias se organizam para oferecer café, bolo e cantar junto.
— No estado do Rio, geralmente, as Folias apresentam dois ou três palhaços, figuras curiosas, com máscaras tenebrosas, que dançam e declamam algo chamado chulas, que são versos rimados, que podem falar do cotidiano, de Cristo, questões religiosas ou políticas — disse Ricardo Gomes Lima, professor do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
De acordo com Gomes Lima, há várias versões que explicam os palhaços. Uma das mais conhecidas é que, antes de chegarem ao menino Jesus, os reis magos fizeram um desvio de rota: passaram primeiro no palácio do rei Herodes, em Jerusalém, que se via ameaçado pela chegada do messias, e lhe perguntaram se sabia algo sobre a chegada da criança. O monarca disse que não, mas pediu que voltassem após encontrá-lo porque também desejava prestar homenagem, e mandou matar todos os primogênitos com menos de 2 anos em Belém.
Os viajantes receberam um alerta divino sobre as más intenções de Herodes, e nunca retornaram. Há quem diga que os palhaços representam os soldados enviados para matar as crianças, como é a tradição em Vassouras. Outros, que são espiões do rei da Judeia que seguiam os magos, mas que no meio do caminho se retornaram devotos de Jesus — andavam mascarados, portanto, para evitar retaliação.
Muitos estudiosos associam ainda os tradicionais bate-bolas dos carnavais cariocas aos palhaços das folias de reis. Também conhecidos como Clóvis (possível corruptela de “clowns”, palhaços em inglês) os bate-bolas tem indumentárias semenhantes aos palhaços e fazem uso de máscaras com as mesmas características – além de provocar medo em quem assiste às suas performances.
A tradição folclória das folias chega no Brasil ainda durante seus anos coloniais, vinda de Portugal, mas a História diz que a origem do Reisado seja inclusive mais antiga que o próprio Estado português. Na Península Ibérica, havia duas festas muito tradicionais: uma que cantava o nascimento de Cristo e outra que saía pela rua se apresentando. Ambos teriam se fundido para criar a Folia de Reis, que vem para o Brasil.
E, como toda tradição brasileira, ganhou contornos próprios devido à mistura que formou o país. A influência da cultura africana, por exemplo, é inquestionável. Em muitas partes do país, vários foliões são também filhos de orixás e usam suas guias por baixo das fardas. O própria palhaço, diz Gomes Lima, carrega em si o sincretismo:
— Quando termina o ciclo da Folia, há um ritual muito bonito em que o palhaço deve pedir perdão a Jesus por ter encarnado o personagem do mal. Vai se despindo das roupas, do cajado, da farda, tirando isso tudo para poder voltar a ser uma pessoa normal no resto do ano. Se não passa por esse ritual de desencorporização, passa o risco de ser possuído — disse Gomes Lima. — Muitas Folias de Reis vão até os terreiros de candomblé pedir proteção, assim como vão à Igreja Católica pedir bênção do padre.
Em poucas regiões do Brasil o folclore é tão vivo quanto no Vale do Café, onde os primeiros registros são do século XIX: em Vassouras, disse Tiago Meirelles, de 35 anos, integrante da folia Descendentes de Davi, são hoje 13 grupos. Além da atividade tradicional de saídas do Natal ao Dia dos Reis, 11 dessas folias farão apresentações nos dias 4 e 5 de janeiro na rua Broadway.
Meirelles crê que a tradição na cidade é indissociável da fé católica, e se perpetua principalmente devido ao aspecto devocional e familiar — ele, por exemplo, participa desde criança dos festejos. A folia de reis na cidade, conta o músico, começou nas lavouras, onde o trabalho era reduzido em dezembro devido ao calor do verão, perpetuando a celebração. Hoje, ele diz, é um trabalho de ano inteiro:
— Nós fazemos reuniões, aulas de música, rifas, bingo, e sociedade. Temos um carnê para nos organizar, porque não é uma coisa barata — disse ele, cuja folia tem 60 pessoas e uma oficina de música para seus integrantes. — De vez em quando há também editais do estado, que dão uma ajuda de custo — completou Meireles, que é conselheiro de cultura imaterial na cidade de Vassouras.
Se antigamente havia competitividade entre as folias, hoje a relação é amigável e a recepção popular, afirmou Meireles, geralmente positiva. Há na cidade uma associação de folia, cujos integrantes se reúnem semanalmente no Centro Cultural Cazuza, além de planos para a expansão das oficinas musicais. A Secretaria de Cultura da cidade já organizou encontros das folias no parque de eventos, chance de trocar culturas e atrair um público de turistras e moradores em busca de entretenimento cultural.
Mesmo que não haja um incentivo à competição, é cada vez maios a adesão de jovens às folias na região do Vale do Café, a maior parte deles atraído pela figura do palhaço e motivada por uma espécie de “batalha de palhaços”. Na região, os palhaços, além dos versos tradicionais que anunciam a chegada do grupo, incorporaram a dança de rua aos seus passos. Há uma disputa para saber qual folia traz os palhaços mais acrobáticos, assustadores e, ao mesmo tempo, divertidos.
Os novos palhaços, longe de remeterem à figura sombria de soldados de Pilatos, têm agilidade, ginga, malabarismo, sensualidade e ritmo. Isso tudo embalado por bandas que a cada dia se assemelham mais às baterias das escolas de samba, com naipes de repiques e tamborins e apelidos divertidos como “Avalanche”, “Terremoto!” e “Furiosa”. Essa mistura entre tradição e renovação tem transformado os cortejos da região em verdadeiras festas de rua, cerimônias cada dia mais pop.
De 25 de dezembro a 6 de janeiro, no Vale do Café, todo dia é dia dos santos reis.
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