Projeto estuda arquitetura das casas senhoriais em Brasil, Portugal e Goa e suas muitas narrativas
Por Renato Lemos
Qualquer um que entre na casa do Barão do Itambé, situada no alto da Praça Barão do Campo Belo, no centro de Vassouras, com certeza irá se impactar, de imediato, com os painéis pintados pelo artista espanhol José Vilaronga, em fins do século XIX (alguns em estado precário de conservação), e que tomam conta de boa parte dos cômodos. A arquiteta e pesquisadora Ana Pessoa na certa se deslumbrou com as pinturas a primeira vez que esteve lá. Mas não ficou nisso – havia muito mais coisa entre aquelas muitas paredes. Ana enxerga tudo aquilo — os painéis, o piso da casa, o tamanho das janelas, as gárgulas nos beirais dos telhados, a disposição dos cômodos, a decoração, os vitrais, a fachada, a posição em relação à cidade – como um retrato sócio cultural de uma época e também como manifestação de poder. Para ela, as casas senhoriais contam histórias.
O projeto “A Casa Senhorial: Anatomia dos Interiores” foi concebido por dois professores portugueses a historiadora da arte Isabel Mendonça e o arquiteto Helder Carita, da Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva (FRESS). O escopo inicial foi o de casas de Lisboa e Rio de Janeiro (hoje estendida à Goa), e, como já havia contatos preliminares, foi proposto à Fundação Casa de Rui Barbosa a parceria brasileira da iniciativa, entre 2011 e 2016 (renovada em 2018).
Nesse momento, Ana Pessoa — pesquisadora da Casa de Rui Barbosa e autora de série de estudos sobre a moradia e as formas de morar do brasileiro — entrou definitivamente na história.
Desde então já são 29 casas pesquisadas.
O Museu Vila de Vassouras conversou com Ana sobre a importância do projeto na História e na arquitetura do Vale do Paraíba e, como brinde, publica o detalhado estudo sobre o Palacete Barão do Itambé, e disponibiliza o acesso ao site do projeto Casas Senhoriais.
Museu Vila de Vassouras: Qual o principal traço que liga as construções pesquisadas no Projeto ” A Casa Senhorial: Anatomia dos Interiores”?
Ana Pessoa: A relação entre a arquitetura portuguesa e brasileira já teve um estudo de Lúcio Costa, que resultou em alguns artigos e na edição de seu caderno de campo, croquis de uma pesquisa em Portugal. A sensação que temos é a mesma, tudo tão parecido, mas tão diferente. Temos os métodos construtivos, padrões decorativos, hierarquias espaciais assemelhadas, mas as estruturas sociais, seja na colônia, seja do pais independente, são muito diferentes e isso deixa sinais nas construções.
MVV: As casas senhoriais sinalizam uma arquitetura de poder?
AP: A casa é um artefato físico e simbólico que atravessa os séculos. Ela é sempre um indicador de determinado espaço social e cultural, e no Vale não e diferente. Temos as diferenças regionais, os diferentes momentos de ascensão ou descenso de cada família ou região. Creio que teremos um quadro mais nítido dessas oscilações ao fim do nosso levantamento.
MVV: Qual a representatividade das casas senhoriais no Vale do Café?
AP: A Vale do Café e uma região fascinante para o pesquisador de arquitetura porque há a ocupação simultânea de grandes áreas, que ganhou muita potência em curto espaço de tempo, com o surgimento de casas urbanas e rurais, para depois ir se esvaindo aos poucos. Há vários fatores para esse declínio, como o esgotamento do solo, a divisão de terras por vários herdeiros, o despreparo para o enfrentamento dos problemas agrícolas, etc. Mas, com tudo isso, a fase da atividade leiteira também produziu riqueza, mas não trouxe uma arquitetura marcante.
MVV: Há algum estudo sobre as divisões de classe dentro dessas construções? Como as senzalas, por exemplo, se enquadram nessa arquitetura?
AP: Na sociedade escravocrata, a senzala é equipamento irrefutável, e Gilberto Freyre já nos demonstrou isso. A questão é que há poucas construções sobreviventes, como já constataram alguns pesquisadores que se dedicaram ao tema. Na medida em que a casa do senhor foi se aburguesando, procurando conforto e ostentação, aumenta ainda mais o contraste com rusticidade das senzalas.
MVV: Vocês chegaram a fazer viagens de campo para fazer esse mapeamento? Conte como foi.
AP: A edição de cada casa supõe visitas para registros fotográficos, isso vinha sendo feito até a pandemia. Estamos continuando as edições com as imagens de terceiros que vimos conseguindo, esperando o momento de podermos fazer a nossa própria documentação.
Em nossa única visita de campo, em março de 2020, tivemos a oportunidade de fotografar a Casa do Barão de Itambé, o que resultou em uma documentação bem completa. (vide o estudo abaixo)
MVV: O que diferencia a Casa do Barão do Itambé das demais mansões da mesma época?
AP: O barão de Itambé morava em uma casa verdadeira “senhorial” em São João del Rey, e se muda para Vassouras já no fim da vida. Acredito que se quis “embelezar” a casa original para dar distinção ao líder político mineiro, o patriarca dos Teixeira Leite, em sua chegada à cidade.
Com isso, foi implantando os ornamentos classicizantes (pilastras, frontão, etc) e encomendada a pintura da sala de jantar. Por essa época, o pintor espanhol Jose Vilaronga, radicado em Valença, está na cidade, trabalhando na igreja. Não se pode esquecer a grande presença do cunhado do barão de Itambé, Custódio Ferreira Leite, o barão de Aiuruoca, na construção e decoração de igrejas da região.
MVV: Fale sobre os afrescos de José Vilaronga.
AP: Sobre Jose Vilaronga, está sendo preparada uma tese de doutorado por Ana Claudia Torem, que será um estudo definitivo sobre o tema, e que irá trazer uma enorme contribuição para a melhor compreensão dessas decorações no Vale. É a mais bonita sala pintada de casa urbana do Vale, que precisa ser preservada com todo cuidado.
MVV: Como você enxerga o Vale do Café no contexto histórico e cultural do país?
AP: O Vale tem uma história social e cultural riquíssima, que vem sendo objeto de estudos de grupos acadêmicos e de pesquisadores locais há décadas. Esse esforço precisa ser incentivado e ampliado. A criação do Museu Vila de Vassouras é um importante passo nesse sentido.
Me parece ser uma boa iniciativa. Ficarei feliz em participar.