Minorias em áreas dominadas por homens, arquiteta e engenheira estão à frente da reforma do casarão que abrigará o Vila de Vassouras
POR PATRICIA PALADINO
Quando crianças, Janaína e Mayara certamente brincaram muito de casinha. Mas não aquela brincadeira tradicional de meninas, fazendo comidinha, embalando as bonecas: elas deviam construir as casas. Hoje, adultas, levam muito a sério seu trabalho em um casarão. A arquiteta Janaína Genaro, 41 anos, e a engenheira de cálculo estrutural Mayara Lobo Amorim, 29, põem as mãos na obra. As duas, especializadas em restauração de patrimônio, integram o time do Museu Vila de Vassouras desde o início do projeto, em 2018, e estão à frente de uma equipe formada quase exclusivamente por homens. Ai elas estão em casa.
Janaína é superintendente de obras da Concrejato, uma das empresas responsáveis por devolver vida a este casarão erguido há mais de 150 anos, e arquiteta chefe do projeto. Formada pela UNESP em Bauru, São Paulo, sempre quis trabalhar com urbanismo, mas começou (como a maioria das mulheres nesta profissão) com arquitetura residencial e por fim se apaixonou pela área de preservação e restauração patrimonial. Não foi amor à primeira vista – mas um longo casamento, que já dura 17 anos e rendeu a revitalização de vários prédios históricos. Do primeiro, o Palácio Anchieta, sede do governo do Espírito Santo, em 2004, até agora, seu currículo inclui o gerenciamento das obras de restauração do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA) e do Palácio Guanabara, ambos no Rio de Janeiro.
Já a engenheira civil especializada em estruturas Mayara sempre quis estar no meio de uma obra. Com a mãe professora de matemática, desde pequena teve a referência dos números — e ser engenheira foi sua primeira e única opção de carreira. Talvez por isso, com apenas 29 anos, já tenha uma bagagem impressionante: construiu pontes, viadutos, projetos ferroviários, fez os cálculos estruturais para projetos de restauração como os da Igreja do Carmo, do Largo do Boticário e da Casa Daros, todos no Rio de Janeiro. E ainda é professora de Estruturas no curso de Arquitetura na Universidade Santa Úrsula, também no Rio. Pela empresa Cerne Engenharia e Projetos, Mayara é responsável por todo o projeto de cálculo do Museu Vila de Vassouras.
As duas, Janaína e Mayara, são complementares: a primeira dá vida ao que a segunda calculou. Mayara é o “suporte” para que Janaína e sua equipe coloquem de pé o projeto desenhado pelo arquiteto Maurício Prochnik. Não é um trabalho fácil. O primeiro desafio foi o estado do prédio.
— Quando o trabalho começou, o casarão estava em estado de ruína. Havia o risco de queda do telhado, do piso, era um risco até para quem iria trabalhar na restauração — conta Janaína. — Portanto, a primeira etapa era o escoramento, para dar segurança tanto para o prédio como para a equipe.
Nesta fase, o trabalho da engenheira de cálculo foi essencial: como inserir uma estrutura nova utilizando o arcabouço original.
— Essa é a base da engenharia: como o que virá vai se sustentar. E no caso de uma restauração, minha especialidade é quase um outro braço da engenharia de cálculo que é aplicada a edificações novas, pois também envolve o desgaste do tempo — explica Mayara.
Antigo e moderno
À medida que as obras iam avançando, também aumentava o fascínio das duas mulheres com o que iam encontrando. Os tijolos de adobe originais por trás das paredes, por exemplo. Não só um pouco da história escondida, mas também o segundo desafio dessa equipe multidisciplinar: fazer com que a restauração tenha o menor impacto possível na edificação, tombada pelo IPHAN. As técnicas tradicionais de construção e os materiais originais devem ser respeitados, enquanto tecnologia de ponta e novos materiais precisam ser compatíveis com o que já está lá. O trabalho de Janaína e Mayara é unir tradição e modernidade, promover contraste e harmonização na preservação deste patrimônio histórico e cultural de Vassouras, erguido inicialmente para servir de hospital e, depois, como asilo para idosos.
Para isso, Janaína coordena uma equipe de 45 pessoas na obra — 42 delas, homens. O que pode ser considerado o terceiro desafio: liderar um time masculino pode não ser uma tarefa fácil para uma mulher. Mas ela garante que foi o menor dos problemas. Desde cedo Janaína descobriu que pela imposição não iria conquistar time algum.
— A base de tudo é o respeito. Eu não dou ordens. Cada um sabe quais são suas atribuições e metas, e se cada um souber exercer seu trabalho tudo dá certo. Talvez por ser mãe, tenho esse lado materno, de me colocar no lugar do outro. Independentemente de estar no ambiente pesado da construção civil. Não é impositivo, é um “vamos juntos”, cada um no seu papel — conta.
Um desses muitos homens da equipe concorda com a chefe, com quem convive há seis anos. O arquiteto Thiago Thuler, “braço direito” de Janaína segundo ela mesma, brinca que “trabalhar com ela é melhor que trabalhar na Google”.
— Janaína nunca alterou a voz para que todos se comprometessem com o trabalho. Porque as pessoas se comprometem com ela. E isso acontece por ela ser muito acessível, compartilhar seu conhecimento, ser transparente. Não é uma chefe, é uma líder de equipe. Se eu conseguir ser metade da profissional que ela é vou estar muito realizado.
Isso mostra, na prática, que as mulheres vêm conseguindo bom espaço na Arquitetura, embora ainda sofram certa discriminação na profissão. O Anuário de Arquitetura e Urbanismo de 2019 do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR) aponta que mulheres totalizam 63% dos profissionais de arquitetura do país, são maioria em todos os estados brasileiros e em 22 deles o percentual aumentou no último ano. Ainda assim, encontram dificuldades na profissão, o que foi comprovado no 1º Diagnóstico de Gênero na Arquitetura e Urbanismo, realizado pela Comissão Temporária de Equidade de Gênero do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU/BR), entre julho de 2019 e fevereiro de 2020.
Baixa representação
Entre muitos outros dados, o levantamento mostra que há discriminação de gênero (44% das mulheres contra 9% dos homens) e assédio moral (31% das mulheres e 18% dos homens) no ambiente de trabalho. Janaína, entretanto, conta que nunca experimentou estas tristes estatísticas.
— Acho que depende de alguns aspectos culturais, mas eu nunca tive nenhum problema com desrespeito em quase 20 anos de profissão. Nunca ouvi uma gracinha, assédio ou piada pelo fato de ser mulher. Acho que esse conceito de que construção civil é um lugar eminentemente masculino vem mudando muito.
Se na Arquitetura o cenário é mais equilibrado, na Engenharia o panorama é diferente. A pesquisa Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil, realizada pelo IBGE, mostra que mulheres são maioria em cursos universitários como Serviço Social (88,3%), Ciências Sociais e Comportamentais (70,4%) e Educação (65,6%), mas são minoria (21,6%) em Engenharia e profissões correlatas. O Relatório de Profissionais por Gênero, do Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (CONFEA), confirma: dos mais de 1 milhão de engenheiros brasileiros, 824.095 são homens, contra apenas 195.430 mulheres.
Mayara Amorim conta que sentiu essa diferença de gêneros se refletir em alguns momentos durante a carreira. E não apenas por ser mulher, mas também por ser muito nova em um ambiente de homens mais velhos.
— Isso não acontece na empresa em que trabalho, onde sempre fui muito respeitada como mulher e como profissional. Mas sinto que, especialmente com novos clientes do escritório, cada vez que começo um projeto tenho que provar conhecimento, competência e capacidade…
E, mais uma vez, é o arquiteto Thiago Thuler quem atesta:
— A Mayara é impressionante. Extremamente competente e de um nível técnico altíssimo. E é muito acessível, aceita ideias, sugestões. Só um profissional com confiança no que faz é capaz disso.
Janaína e Mayara. Lembrem destes nomes quando o Museu Vila de Vassouras estiver aberto e o público puder caminhar por seus vários espaços de exposição, jardins e áreas de convivências – a mão das duas estará ali, em cada pedaço. Elas terão sido peças fundamentais para o trabalho de resgate da história, da memória, da cultura e do patrimônio do Vale do Café.
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