Professor da história que vai das salas de aula às ruas, Luiz Antônio Simas fala sobre as raízes do Vale do Café, o sincretismo e a cultura preta carioca
Luiz Antônio Simas é professor de história — isso é certo. Mas resumir sua identidade ao que faz diariamente diante de uma turma de Ensino Médio é reduzir sua personalidade. Simas não cabe em três palavras, em uma profissão, em uma sala de aula — ele é professor de rua. Sua visão de Brasil junta futebol, carnaval, macumba, churrasquinho na esquina, cerveja gelada, Lima Barreto e Jorge Amado, João do Rio e Dostoiévski, Sebastian Bach e Cartola, Botafogo e Mangueira, Segundo Império e Império Serrano, chinelo de dedo, ventinho bom, conversa fiada, encantaria, tambor e botequim. Morro e asfalto, futuro e ancestralidade.
Em conversa com o produtor de arte e curador Marcello Dantas e com o jornalista Renato Lemos, Simas – autor de uma penca de livros sobre religiosidade, história e cultura popular – fala sobre as raízes do Vale do Café, o derramamento da cultura do Vale para o Rio de Janeiro, as diásporas internas, o amalgamento, o sincretismo, as redes de proteção e a formação da cultura preta carioca. Fala também sobre Clementina de Jesus e Noel Rosa, Nei Lopes e Leônidas da Silva, jongo e caxambu, geraldinos e arquibaldos, Jesus Menino e Oxalá, sobre o mundo que aprendeu a ver pelas frestas da cultura oficial. Simas bate o martelo: o rio Paraíba, pela sua importância cultural e potência musical, é o nosso Mississipi.
Autor de alguns livros essenciais à compreensão do Brasil que está diante de nós — como “O Corpo Encantado das Ruas”, “Maracanã” e o recém-lançado “Umbandas” — ele enxerga o país como parte de um projeto elitista e colonizador (“violento, misógino, acumulador, escravocrata e racista”) que, em suas pretensões, deu muito certo; e que precisa ser urgentemente revertido: “Agora temos é que fazer o Brasil dar errado”. (Renato Lemos)
Marcello Dantas: Olhando para todas as coisas que se fala da cultura brasileira em diferentes museus, instituições e exposições, a gente sente que há um aspecto que é importante na formação da identidade do Brasil, mas que raramente é falado com clareza: a miscigenação brasileira. E essa miscigenação não é uma proposição, é decorrente, em grande parte, de estupro, violência, imposição. Não é uma coisa pra ser necessariamente celebrada porque é uma casualidade. Mas tem um outro movimento que é quase o oposto da miscigenação e uma resistência a isso: o sincretismo. A partir dele, a gente criou mecanismos de resistência cultural, de afirmação de identidade, de relacionamento e convivência entre culturas, que culminaram no nascimento do samba, da umbanda, do jongo. O que se pode ganhar com esse amalgamento?
Luiz Antônio Simas: Quando a gente discute sincretismo, há uma leitura muito pobre do que ele é. A rigor, no cosmograma banto, por exemplo — e aquela área de Vassouras foi muito banto —, há um princípio chamado mooyo, que acho inclusive ser uma das chaves para pensar o sincretismo brasileiro. A ideia do mooyo entre os bantos é a ideia do acúmulo da força, em que você acumula as forças vitais com diversas diferenças, inclusive que estão fora do seu grupo. Então tudo à princípio é acumulável. Essa perspectiva sincrética, essa amálgama é a característica da nossa formação. Quando a gente pensa, por exemplo, na umbanda, é até complicado definir o que ela é. Eu parto do princípio de que umbanda é tudo o que se autorreferencia como umbanda.
Renato Lemos: Às vezes há muito pudor em resumir essas várias referências na palavra macumba. É um termo muito usado por você.
Luiz Antônio Simas: Macumba é até uma redefinição do conceito. Cumba é uma expressão que veio do Kikongo e, a rigor, é feiticeiro — mas o feiticeiro no sentido de quem tem a capacidade de encantar com a palavra. Macumba, na verdade, é a união de feiticeiros. No Kimbundu, Ma vem de som, de sonoridade. Tanto que havia um instrumento nos primórdios do samba, uma espécie de reco-reco, também chamado de macumba, mas com um sentido diferente do sentido da ritualística. Macumba na verdade é isso, é qualquer procedimento de encantamento do mundo, que é um dos fundamentos dessas civilizações.
Renato Lemos: Isso já podia ser visto no Vale do Paraíba do século XIX?
Luiz Antônio Simas: O Paraíba é o Rio Mississipi brasileiro, quando você pensa no que é o Mississipi para a aventura civilizatória norte-americana. Você conta uma história do Paraíba pelos sons que estão ali.
Marcello Dantas: A gente vê, obviamente, que a questão religiosa é onde o sincretismo mais se manifesta, só que não é só aí. Além da música, certamente. A gente vai ver isso na gastronomia, em todo tipo de iconografia, vestimenta…
Luiz Antônio Simas: Olha, você pega a sonoridade. As sonoridades são muito curiosas. Eu costumo trabalhar com uma ideia de enzima que catalisa diversas coisas diferentes. Você tem por exemplo uma enzima sonora que é certamente uma enzima centro-africana. O ritmo, se você pega todo um complexo musical que envolve o jongo, que envolve as diversas formas de samba, o samba de partido alto, a chula, a chula raiada, e tal, você tem ali um elemento comum que é o batuque centro-africano, Congo Angola.
Renato Lemos: Onde isso tudo se cruza por aqui?
Luiz Antônio Simas: O Brasil tem outras sonoridades, outras perspectivas. Tem o tambor e ao mesmo tempo, tem um cavaquinho e um violão, que são instrumentos ibéricos. Vai ver um sujeito como o João da Baiana que, quando perguntaram pra ele de onde vinha aquele toque do pandeiro, dizia que conviveu muito com os ciganos da Praça Onze, que tocavam sem a platinela.
Marcello Dantas: Eu tenho uma teoria de que na realidade esse processo sincrético, ele não é só africano, ele vem de Portugal. Ou seja, a matriz portuguesa é sincrética em si por causa da sobreposição islâmica, católica, judaica, muito cigano. Todas essas coisas que já existiam lá antes da migração que causaram essa Portugal que teve que conviver com essas múltiplas camadas, ou seja, no próprio projeto identitário português já estava uma tolerância. Porque o sincretismo diz respeito a uma certa tolerância.
Luiz Antônio Simas: E Portugal tem muito disso. E ainda vem depois a questão que eu chamo de cristianismo do fantástico, que é o cristianismo português marcado por Dom Sebastião, pelas encantarias, as trovas do Bandarra. A rigor, você não tem nenhuma religião, nenhuma civilização que não seja uma medida sincrética porque você teria que pressupor um isolamento total que não faz sentido. O território da cultura é o território da contaminação. De você se afetar e as coisas vão acontecendo.Na dança de salão portuguesa, por exemplo, havia o gesto de botar as mãos na cadeira. Quando você chega em um samba de roda brasileiro, você vai ver que ele mistura as diversas danças de umbigada centro-africanas com alguns movimentos, inclusive, que são de danças de salão europeias. Você pega uma feijoada, que é o cassoulet.
Renato Lemos: Vem do cassoulet mesmo?
Luiz Antônio Simas: Ah, vem! Na antropologia da comida, ela praticamente não existia. O feijão trepador é guarani. E você quer ver uma coisa muito curiosa quando você pensa em culinária? Pensando na culinária das casas de candomblé e umbanda, há muitos alimentos que têm como fundamento o milho. A canjica que você faz para Oxalá, axoxô de Oxossi, diversas comidas de Ossanha. É americano. Não tinha na África. O maior produtor de farinha de mandioca do mundo é a Nigéria, o segundo é o Brasil. A mandioca é uma raiz que é daqui.
Renato Lemos: Aí também entram os indígenas brasileiros, o povo originário.
Luiz Antônio Simas: Você tem o candomblé de índio no Brasil, o candomblé de caboclo, você tem muita ritualística indígena. A encantaria, que é muito forte no Pará e no Maranhão, chega ao Rio de Janeiro via Pará, Maranhão e tal, a encantaria é indígena. O catimbó que é um dos cultos mais interessantes aqui, é tapuia porque ele é todo fundamentado nos ritos que envolvem a bebida da raiz de jurema. O tupi nunca bebeu jurema, o tupi não conhecia a jurema. A tapuia… mas seu Zé é tapuia, é índio, disso aí eu não tenho a menor dúvida. Zé Pilintra é o caso clássico de uma amálgama em torno de uma figura que a rigor é um mestre do catimbó, é indígena, é tapuia.
Renato Lemos: Mas tem coisa que vai e volta, não?
Luiz Antônio Simas: É fluxo e refluxo. Você pega uma roupa clássica de baiana, aquele traje a rigor é fruto da islamização. Quando você pensa nessa dimensão do cheiro, da sonoridade, de pensar uma corporeidade brasileira. A dança de um mestre-sala, basicamente, é uma dança de salão europeia. É o cortejo em relação à porta bandeira que ganha características brasileiras. Um mestre-sala seminal cuja família vinha, aliás, daquela região de Vassouras, do Vale da Paraíba, foi Getúlio Marinho, o amor do Estácio. O Marinho falava que um passo que ele consagrou do mestre-sala foi o de ir pra trás e ficar cortejando a porta-bandeira, que ele teve a ideia para esse passo vendo um jogador de futebol, Fausto, a maravilha negra do Vasco, matar a bola. Porque o Fausto para matar a bola, ele vinha pra trás e fazia assim e a bola morria no peito dele.
Renato Lemos: Isso é do cacete…
Luiz Antônio Simas: Com a dança e a música é mesma coisa. Tanto que a própria ideia do samba, que é uma expressão que começa a aparecer em meados do XIX, é designando a rigor uma festa. Festa com bailado era o samba. E essa questão é muito curiosa porque quando tem o declínio da cafeicultura vale-paraibana…
Marcello Dantas: Sim, esse é o momento de transformação porque é a hora que vaza.
Luiz Antônio Simas: Vaza, porque ali é mar de morro e há um processo de erosão de solo muito rápido. E aí você tem um movimento do café em direção ao chamado Oeste novo, paulista. Nem é a oeste de São Paulo, mas ao oeste do Vale do Paraíba. É nessa época que você tem a grande migração vale-paraibana pra o Rio.
Marcello Dantas: Que funda a favela, né?
Luiz Antônio Simas: Sim, a rigor você tem duas comunidades de samba no Rio de Janeiro. Na Serrinha, Serra da Misericórdia, berço do Império Serrano, é todo mundo do Vale do Paraíba. E o fundamento ali era basicamente o jongo e a macumba, a umbanda. A tenda espírita de Xangô.
Marcello Dantas: Quer dizer, ainda não tinha esse nome a umbanda…
Luiz Antônio Simas: Não, não tinha esse nome. A umbanda é uma designação que começa a surgir em 1908, anunciação do Caboclo das sete encruzilhadas. Foi São Gonçalo.
Marcello Dantas: Tem um dia. É uma das poucas religiões que tem um dia.
Luiz Antônio Simas: Sim, 15 de novembro de 1908, mas tem um detalhe muito curioso nessa história. A anunciação da umbanda vem quando um garoto chamado Zélio, que estava muito doente e não conseguia andar. A mãe dele o leva em uma senhora chamada Dona Cândida, que era rezadeira e recebia o espírito de um preto velho chamado Pai Antônio. Ou seja, já é a umbanda antes da umbanda.
Renato Lemos: Mas isso também estava acontecendo em outras partes, não?
Luiz Antônio Simas: Naquela região do Vale do Paraíba, em Minas Gerais, na Bahia, há muita referência da ocorrência dos calundus. Os calundus, se você for ver como é que era, desde o século XVIII era umbanda. E aí o Zélio incorpora uma entidade, o Caboclo das sete encruzilhadas, que é uma coisa muito curiosa, é brasileiríssimo porque dizem que tinha sido o espírito de um jesuíta. E quando perguntam o porquê das sete encruzilhadas, ele diz que é porque não há caminho fechado pra mim, vou percorrer todos os caminhos. Então a Serrinha tem isso, um morro que é profundamente ligado ao Vale do Paraíba.
Marcello Dantas: É a terra de uma fertilidade criativa muito singular.
Luiz Antônio Simas: Você faz um verdadeiro apanhado das sonoridades de Vassouras, do Vale do Paraíba, com a própria oralidade da Clementina de Jesus, que é de Valença. Clementina é do Vale, ouvia aqueles cantos de trabalho, aquelas ladainhas cantadas no que eles chamavam de língua do Congo. Outro daquela região é Eloy Antero Dias, o Mano Eloy, que é o cara que, segundo Carlos Cachaça, leva o samba para a Mangueira. Ele era babalorixá, foi um dos fundadores do Império Serrano, sindicato da estiva, dos pretos. Então é o momento do disparo, com o declínio da lavoura cafeeira, os sons do Paraíba vão se espraiando e para essa formação inclusive do Rio de Janeiro, é crucial. A Portela, por exemplo, é o encontro de uma turma que sai do Centro da cidade com as reformas urbanas e a turma que desce do Vale do Paraíba.
Renato Lemos: E o que que você acha que costura isso aí? Qual o elo que tem entre o que tinha lá de raiz e o que tem, por exemplo, no samba atualmente?
Luiz Antônio Simas: Ah, tem muita coisa. Tem um trabalho do falecido Roberto Moura, um livro que se chama “No princípio era a roda”. É um livro interessante porque parte do princípio que não foi o samba que deu origem à roda de samba, foi a roda que deu origem ao samba. E trabalha em cima de uma ideia que é muito presente quando você estuda aquela região vale-paraibana, a escravidão.
Marcello Dantas: Muita coisa vem dali e se esparrama pelas bordas.
Luiz Antônio Simas: Conceitualmente, a diáspora trabalha com a lógica da dispersão, mas cultura de diáspora trabalha com a lógica da aglomeração. Toda diáspora é uma catástrofe, mas ao mesmo tempo é um empreendimento inventivo. A gente atenta muito para a diáspora africana, mas damos pouca atenção às diásporas internas: a microdiáspora dos baianos que vêm de Salvador para a Cidade Nova, os bantus do vale do Paraíba que vêm para o Rio. E me parece que um elemento crucial é que toda cultura de diáspora é fundamentada na coletividade porque o princípio norteador do grupo é a ideia da ancestralidade. Se você não tem quem conte a sua história, você morre, então forma-se uma cultura que, a meu ver, é muito fundamentada na importância ritualística da festa. Uma festa que é fundamentada na sonoridade, no tambor. Todas as gramáticas corporais centro-africanas se fundamentam na ideia da resposta que você dá à musicalidade. Ela não opera no tempo nem no contratempo, mas no espaço vazio que existe entre um tempo e o outro.
Renato Lemos: Por que você diz que isso é centro-africano?
Luiz Antônio Simas: Porque é uma característica muito registrada no Congo Angola. Você pega os três toques básicos da rítmica percussiva de lá — barravento, muzenza e o cabula — e vai ver que é o samba. É nesse sentido que eu digo que o Paraíba é o Mississipi: a sonoridade acompanha o rio, ele vai indo. Aquelas sonoridades todas vão em um processo incessante e elas vão passando. E aí é um encontro fascinante.
Renato Lemos: E como isso desemboca nas escolas de samba?
Luiz Antônio Simas: A Portela é fascinante: Oswaldo Cruz recebe uma migração maciça vale-paraibana, tanto que um dos três fundadores da Portela, Rufino, é do Vale do Paraíba. Mas ao mesmo tempo recebe muita migração urbana, dos que viviam no centro da cidade e que com as reformas urbanas de Passos e, depois, do Carlos Sampaio, vão para aquela região. Havia também uma presença grande de portugueses pobres que trabalhavam sobretudo com pequeno comércio. E dessa amálgama, você tem o samba portelense que é diferente do tipo de samba do Estácio de Sá. O toque de cavaquinho do Paulinho da Viola é o toque do Vale do Paraíba, o toque do Osmar do Cavaco, daquele samba calangado, que é outro ritmo dessa região de Vassouras. Não é um ritmo sagrado, é um ritmo profano, e é muito parecido com alguns ritmos do Nordeste, tanto que o calango, ali, tem muito registro de sanfona. Tem muita folia de reis, trazida para o Rio pelo Vale do Paraíba.
Renato Lemos: Eu estive há pouco tempo em Vassouras, em um encontro de Folia de Reis. É engraçado, assim, que os caras têm uma renovação. Os palhaços da folia de reis agora fazem passos de dança de rua. Dança de rua, street dance! Uma presença de garotada fazendo, vendo, se reconhecendo. Eu fiquei impressionado, porque estava cheio o encontro. A parte tradicional da folia tá lá, o presépio, tudo. Quando entram os palhaços, os caras reelaboraram aquela dança, fazem os passos normais e tudo o mais e a galera em volta, a garotada vendo e interagindo, forte!
Luiz Antônio Simas: Quer ver uma coisa, por exemplo. Eu imagino um museu desse flertando com essas referências da cultura. Tem uma cultura de folia de reis que aqui no Rio de Janeiro vem através do Vale do Paraíba, que eu acho que influencia inclusive do ponto de vista da indumentária a cultura do bate-bola. O bate-bola clássico do carnaval do Rio de Janeiro é o palhaço Clóvis. Ele é um bate-bola. Então você tem essa questão do bate-bola.
Renato Lemos: E que mete medo porque é pra meter medo.
Luiz Antônio Simas: É pra meter medo! O palhaço da folia é o soldado de Herodes. Aquilo ali é clássico. Tem uma folia de reis do Morro da Formiga que é mirim, Estrela Radiante. Essa folia no dia de reis do ano passado. Esse ano eu não vi a saída deles, que eu não estava nem aí. Mas esses meninos no ano passado, os palhaços vinham como bate-bolas, com aquelas bexigas e tal. Mas hoje tem um flerte com essa cultura de rua direto, tanto a roupa deles.
Renato Lemos: Eu gostei porque eu achei que tá vivo aquilo ali, entendeu? Não é folclore, é uma coisa viva.
Luiz Antônio Simas: Continua! Porque se fosse estático, aí tem a diferença até conceitual entre tradição e tradicionalismo. A tradição não é estática, nunca foi, ela é dinâmica, cumulativa, é um elo que vai se renovando. E ela só está viva exatamente por conta dessa capacidade dessa dinâmica, que é um negócio fascinante. Isso tá no Rio todo.
Marcello Dantas: O Rio de Janeiro sem essa migração deveria ser um tédio.
Luiz Antônio Simas: Não sobra nada! Não é porque uma cultura é melhor e a outra pior, isso não existe, mas é porque o empreendimento escravocrata foi tão grande, tamanho, foi tanta gente! No Vale do Paraíba, a cidade que teve proporcionalmente o maior registro de gente escravizada por gente livre das Américas é Valença.
Marcello Dantas: E por que você acha que os quilombos trazem traços de identidade? Porque o quilombo tem uma coisa fundamental, ele tem uma ideia, tem uma traição, uma libertação…
Luiz Antônio Simas: Porque você tem duas linhas de interpretação. Em certa medida, o quilombo vive na encruzilhada entre a resistência e a negociação. Você pega o Flávio Gomes, por exemplo, que pra mim é o maior especialista do Brasil em estudo sobre quilombo. É muito raro você encontrar um quilombo que trabalha com a perspectiva do isolamento, tanto que você tem inúmeros relatos de quilombos que comercializavam com vilas próximas. E até excedente de produção quilombola que era negociado.
Renato Lemos : O Flávio Gomes fala muito sobre isso acontecer no Paraíba.
Luiz Antônio Simas: No caso do Vale do Paraíba, tem uma questão que é a seguinte: o auge da escravidão no Vale do Paraíba paradoxalmente já é no contexto da crise da escravidão. A Lei Feijó, que é a primeira lei de extinção do tráfico, é de 1831, no início da Regência. Então já há um processo marcado por uma tensão, por uma violência extremada, que era considerado por muita gente um estertor da mão de obra escrava, então você tinha que explorar até a última gota. E esse incremento vinha acompanhado da ideia do contrabando, porque quando o tráfico negreiro é proibido, é proibido o tráfico interoceânico. A escravidão do Vale do Paraíba, no auge dela, é uma escravidão crioula, o crioulo é o nascido aqui. A Lei Áurea não libertou nenhum africano, já não se migrava mais.
Marcello Dantas: E a expectativa de vida de um escravo no Brasil era muito baixa.
Luiz Antônio Simas: E com a Lei Eusébio de Queiróz acontece uma coisa muito curiosa, porque o café chega pela primeira vez na pauta das exportações brasileiras liderando com ampla margem em relação ao açúcar e ao algodão no início do Segundo Reinado. É 1840 o primeiro ano em que o café lidera a pauta e, curiosamente, é o ano da maioridade de Dom Pedro II. E aí o café vem crescendo. E, ao mesmo tempo, é o momento em que você proíbe o tráfico atlântico pra cá.
É um choque porque a cafeicultura está bombando no Vale do Paraíba, há um sinal muito forte de crise de mão de obra. E aí, uma das soluções encontradas foi o tráfico interno, trazendo sobretudo no sentido norte-sul porque já há a decadência de umas culturas no Nordeste. Para o Vale do Paraíba, vê-se uma migração consistente do escravizado nordestino, e que tem algumas referências culturais que vêm dali.
Marcello Dantas: Mas na Bahia tem iorubá.
Luiz Antônio Simas: Mas aí é mais uma escravidão urbana. O registro da presença do iorubá no campo é muito pequeno. E a grande migração iorubá pra cá já é no colapso do Vale do Paraíba. É a última década da escravidão e a primeira década da república. O que acontece de interessante e é o que define as espiritualidades da cidade como eu costumo dizer, é que esse iorubá que está descendo da Bahia para a cidade encontra esse bantu que está saindo do Vale do Paraíba para a cidade. Então esse é o encontro-chave desse processo. São as nações como a gente costuma dizer. As nações africanas que vão se redefinindo no Rio de Janeiro. Isso tem muita influência de Minas, é muito forte a questão também da congada, todo o ciclo que envolve a devoção a Nossa Senhora do Rosário, a São Benedito.
Renato Lemos: Portugal já tinha começado essa misturada na África.
Luiz Antônio Simas: Sim. Muito forte. Quando Portugal aporta na África para trazer escravos para o Brasil, o Congo já tinha sido marcado por um impacto muito forte do catolicismo. O Rei Afonso I do Congo convertendo a Rainha Ginga ao catolicismo. Mas ao mesmo tempo ela mantém a tradição, porque para o bantu essa é que era a chave. Para o bantu não tem nenhuma contradição em você se converter ao catolicismo, você ser devoto da Virgem Maria, como o caso de Nzinga. E ao mesmo tempo ela era a jaga, o jaga é o feiticeiro por excelência. O Ethos da formação social e do funcionamento da sociedade entre os jagas é o feitiço. A hierarquização se manifesta pela sua capacidade de lidar com o feitiço. Os jagas têm essa tradição e veio jaga pra cá também. O jaga é Angola também. E ao mesmo tempo ela era devota e se mantinha uma feiticeira jaga. E não via a menor contradição naquilo.
Renato Lemos: E como o quilombo se relaciona com a cidade, como ele se incluí nos projetos urbanos?
Luiz Antônio Simas: É interessante pensar como a questão do aquilombamento repercute depois nas formas de organização dos negros na cidade. Porque o quilombo a rigor constrói redes de proteção social que, com a Lei Áurea, são esgarçadas. E daí você vai ver que vai sendo construída nas cidades, dentro de uma lógica que é muito próxima da ideia de uma cultura quilombola, de uma cultura de pensar o fortalecimento de um grupo. O que seria mais ou menos um princípio de um aquilombamento urbano é o zungú. São casas coletivas de negros, a quem atribui-se o nome porque era muito comum que os zungús servissem angus nos almoços. Lá tinha a música, tinha os ritos espirituais. Incluía o terreiro, a refeição, a espiritualidade. Hoje ainda você tem no centro do Rio, na região do Largo de São Francisco da Prainha, alguns sobrados que foram zungús.
Marcello Dantas: Então esse é um ponto que é curioso porque eu tenho uma sensação de que o fim da escravidão estabelece essa infiltração por toda a sociedade.
Luiz Antônio Simas: Você que ver uma coisa interessante? Noel Rosa nasce em 1910, Vila Isabel, classe média, branco. O Leônidas da Silva, jogador de futebol, Diamante Negro, nasce ali do lado, em São Cristóvão, dois anos e meio depois. O Noel é de dezembro de 1910, o Leônidas é de março de 1913, preto, filho de uma empregada doméstica, cuja família é oriunda da região do Vale. Aí você pensa uma coisa curiosa. Quando Noel e Leônidas nascem, se você tivesse que fazer uma aposta: daqui a 20 anos, um deles vai ser jogador de futebol e o outro vai ser sambista.
Marcello Dantas: Provavelmente seria Leônidas sambista e o Noel jogador de futebol.
Luiz Antônio Simas: Cem por cento. Porque é o momento em que o futebol é o esporte praticado pelos filhos de uma elite branca. E é um momento em que os batuques dos negros, como eles eram conhecidos, vêm tomando a cidade. Agora, curiosamente, o que acontece? Quando você chega na década de 30, o jogador de futebol é preto e o sambista, branco. E aí a indagação: o que possibilita esse trânsito, que é fascinante? Você vai chegar na década de 30, o Leônidas é o primeiro garoto propaganda negro da História do Brasil, vai fazer o anúncio do chocolate, o diamante negro, batizado em sua homenagem. E o Noel é um sambista que tá convivendo com aquela trupe…
Marcello Dantas: Eu ia apostar nisso. Na verdade, o que você está narrando é a mudança da sociedade como um todo. Quando acaba a escravidão, apenas há um assentamento de uma realidade que já era visível por todos os lados. É diferente da sociedade americana que tinha uma definição muito clara de quem era branco e quem era negro. Aqui você não tinha mais capacidade de discernir. E aí, a partir do momento em que você tira a regra que separa, fica realmente impossível.
Luiz Antônio Simas: Impossível! E aí, a rigor, você pega por exemplo, uma Praça Tiradentes no início do século XX. A Praça Tiradentes mistura tudo o que você possa imaginar estaria acontecendo lá. A ideia de uma cultura isolada, após a abolição, não se sustenta minimamente.
Marcello Dantas: Você deve ter visto o filme do João (Moreira) Salles sobre o Vale. O mais fascinante é o quanto as questões ambientais já eram explícitas. Já se tinha ciência sobre uma transformação tanto social quanto ambiental. Por outro, você tem essa fricção entre o fundamentalismo e a tolerância. Ou seja, você tem um Brasil que costumávamos imaginar como um país de tolerância, mas que a História está revelando, tanto no movimento atual quando em uma releitura, que na realidade é exatamente o contrário.
Luiz Antônio Simas: E é curioso que acabaram as ilusões. Em um certo momento eu acho que houve um certo projeto, uma ilusão, de que você resolveria no campo da cultura os dilemas da formação social brasileira. O Vale do Paraíba, por exemplo, se recusa a pensar na alternativa da imigração, de tão entranhada quer era a escravidão. Não tem o que justifique economicamente por exemplo a escravidão no Vale do Paraíba, ele morre abraçando a escravidão de uma forma impactante. E é curioso, tem o trabalho do Stanley Stein sobre Vassouras, quando ele fala dessa questão toda, ele fala uma coisa muito curiosa ali. É como se fosse uma crônica de uma morte anunciada. É como se você realmente percebesse que você estava caminhando para um precipício Então você tem ali uma cultura da escravidão entranhada, intolerável. A questão é essa: não me interessa se eu vou perder dinheiro. E aí eu acho que bate muito com algumas coisas que estão acontecendo no Brasil hoje. Não interessa se eu vou perder dinheiro, mas é inadmissível que a estrutura que fundamentou aquela sociedade fosse alterada. É uma questão de status.
Marcello Dantas: Quais foram, se você fosse buscar na tua memória, alguma coisa ou de artes ou de música ou mesmo documento histórico, qual é a coisa simbólica que melhor você se lembra que consegue traduzir essa tensão e essa infiltração?
Luiz Antônio Simas: Tem umas fotos do início do século que são muito impactantes do Morro dos Trapicheiros, que hoje é o Morro do Salgueiro. O Morro do Salgueiro tem uma topografia se você perceber que é muito parecida com a topografia do Vale do Paraíba. Não é aquele morro empinado, aquela topografia do Salgueiro é muito curiosa. É um morro que só tinha preto, foi todo mundo do Vale do Paraíba para lá. Não era como no Morro da Providência onde você tinha o preto, o mulato, o português pobre, isso era comum. Não era como Mangueira que é um morro muito português, com trabalhador da rede ferroviária. Tem umas fotos do Morro do Salgueiro que é difícil você diferenciar o que você está vendo ali de uma foto, por exemplo, no Vale do Paraíba no ciclo da escravidão. O Salgueiro era o Vale do Paraíba. Na década de 60, meu parceiro Nei Lopes falava isso, as pessoas tinham medo do Salgueiro. Década de 60 do século XX.
Renato Lemos: Muita coisa ficou por lá, né? O próprio Salgueiro, que deu nome ao morro, era um português. E essa relação é muito presente, ainda é. Um conflito. Nas pessoas, nas manifestações de cultura. No Salgueiro até hoje tem caxambu.
Luiz Antônio Simas: A terra era uma terra de um português, mas que nunca ocupou. O Salgueiro é ocupação direta vale paraibana. E vai todo mundo lá. E tem essa peculiaridade. Não era como no Morro dos Macacos, que era um Morro de operários de fábricas. Não era como o Borel, que eram operários, trabalhadores da Fábrica Boreal de tabaco. Não era como o Chapéu Mangueira. Não era como a Providência. O Salgueiro era o Vale do Paraíba. Você olha aquilo e fica muito impressionado. O tipo físico das pessoas que viviam no Salgueiro é um tipo que lembra muito o Vale do Paraíba. Você está em uma área que foi devastada também, porque ali tinha cafezal pra caramba no Rio de Janeiro, mas foi tudo para a cucuia. Me impacta muito essa ideia do Salgueiro como um Vale do Paraíba dentro do Rio de Janeiro, com uma imagem que é chocante no sentido de que mostra ali a escravidão, aquela coisa pesada do escravocrata. E ao mesmo tempo, se você pensa mais a sonoridade do Salgueiro é uma sonoridade do Vale do Paraíba. Os caras estão vivendo como se vivessem no Vale do Paraíba, trabalhando como ensacadores de Trapiche dos armazéns que estão ali embaixo, sem brancos.
Marcello Dantas: É interessante porque parece que o tempo todo a gente está falando da história das escolas de samba.
Luiz Antônio Simas: É porque se parar para pensar, é a forma da aglutinação. A gente está falando de aglutinação. Se você pergunta pro Cartola de onde a família dele veio, ele não faz a menor ideia. Vai ser o quê? Provavelmente da África Central, mas não faz a menor ideia. Quando fazem essa pergunta óbvia para o Cartola: Cartola, de onde você vem? Ele vira e fala: de Mangueira. É uma resposta simples, mas traz isso. A Mangueira, a rigor, era um movimento de aglutinação, de construção da identidade, de elaboração simbólica em torno do verde e rosa. O Cartola por acaso, uma parte da família dele vem do Vale do Paraíba e outra do norte fluminense, de Campos. A família do Cartola só vem pro Rio porque o avô do Cartola era motorista do Nilo Peçanha. Que por sua vez você olha a cara do Nilo Peçanha ele era classicamente um mulato.
Marcello Dantas: O samba, essas manifestações todas, o candomblé e tudo o mais, que foram reprimidas em um certo momento histórico, foram proibidas de fato. Qual é a manifestação disso na cultura atual? É o baile funk. Vamos reprimir, vamos oprimir, vamos impedir, isso na realidade representa a criminalidade, representa a distorção dos valores. A lógica é absolutamente a mesma.
Luiz Antônio Simas: E aí opera-se um movimento que trabalha com duas lógicas que não são excludentes. Você vai ver que no próprio processo de configuração do samba, ele era muito marcado por essa cultura do tambor, né? Quando você tem o advento do disco, da indústria fonográfica, você começa a ter um público consumidor de música, mas que não era um público afeito a esses batuques. Então repare que até do ponto de vista estético, o samba vai sendo desafricanizado em um certo sentido. O tambor vai sumindo.
Marcello Dantas: Vai se harmonizando. E aí, obviamente, Ary Barroso.
Luiz Antônio Simas: É o Ary. Em última análise se chega à bossa nova. O grande espanto foi a Clementina de Jesus, em 1963. Ela vinha daquela região do Vale, veio para o Rio de Janeiro para trabalhar como empregada doméstica, e já tinha 62 anos quando foi “descoberta”. O Hermínio [Bello de Carvalho] fica muito fascinado com aquilo e a leva para o disco. E ela cantava muitos cantos de trabalho do Vale do Paraíba.
Tia Maria tem quatro filhos
Sou dos quatro o pequenininho
panelinha pequenininha
mas todos quatro precisam comer
bate as canelas que eu quero ver.
Falava que ela ouvia isso quando era criança, lavando roupa no rio Paraíba. E ao mesmo tempo ela trazia os pontos de macumba, misturados com ladainha religiosa. O primeiro disco dela é basicamente um disco que ela canta as sonoridades pretas do Vale do Paraíba, que é um negócio impressionante, um choque. Até teve gente que chamou de elo perdido entre a África e o Brasil.
Renato Lemos: Esse elo foi propositalmente perdido, não é? – ou perder esse elo faz parte de um certo projeto de Brasil, não?
Simas: Há quem diga que o Brasil deu errado. Discordo. Discordo muito. O Brasil foi projetado para ser excludente, racista, machista, homofóbico, concentrador de renda, inimigo da educação, assassino de sua gente, misógino. Somos isso tudo, não? Nosso problema não é ter dado errado. O Brasil como projeto, até agora, deu certo. Fazer o Brasil começar a dar errado é a nossa tarefa mais urgente.
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