Pioneira na causa feminista e grande benfeitora de Vassouras, Eufrásia Teixeira Leite tem história contada em livro e filme
Por João Carlos Pedroso
(Foto: Eufrásia Teixeira Leite, retratada em quadro de Carolus Duran | Acervo do Museu Casa da Hera)
Eufrásia Teixeira Leite ultrapassou com sobras o clichê “uma mulher à frente de seu tempo”. Foi muito além. Uma espécie de cometa que surgiu em Vassouras em 1850 e, até se apagar, em 1930, imprimiu seu brilho revolucionário no mundo dos negócios, nas atividades filantrópicas e até na vida pessoal, ao manter um relacionamento nada convencional com o abolicionista Joaquim Nabuco.
Herdeira de família de barões do café transformada em exportadores do grão, com a morte de seus pais, quando tinha pouco mais de 21 anos, ela poderia se acomodar como rica e jovem herdeira e gastar sua fortuna nos salões da Europa. Mas escolheu a carreira de investidora, multiplicou seu capital (seria bilionária para os padrões de hoje) e, ao morrer, sem herdeiros, doou sua herança para instituições assistenciais e educacionais de Vassouras — a Casa da Hera, hoje museu, era sua residência na cidade do Vale do Café.
Uma vida tão rica (e já contada algumas vezes) só poderia ser uma fonte inesgotável para literatura e cinema e continua rendendo frutos. A escritora e professora Luiza Lobo acaba de lançar “Fábrica de Mentiras — do Vale do Café ao Arco do Triunfo”, versão romanceada (mas fruto de muita pesquisa) da história de Eufrásia. E a cineasta — e também escritora — Luciana Savaget está produzindo um documentário sobre ela. Luiza tem ligações profundas com a pioneira.
— Eufrásia Teixeira Leite é minha prima de quinto grau, filha de Joaquim José Teixeira Leite. Sou descendente do irmão dele, o barão de Vassouras. Assim, sempre ouvi de minha tia Laura, irmã de minha mãe, histórias da família.
Luiza fez das “histórias de família” objeto de pesquisas e trabalhos:
— Ao ensinar literatura na Europa por cinco anos, visitei os locais de origem da família materna do barão, estimulada pela compra de sua fazenda em Vassouras, a Cachoeira Grande. Esse foi o material para meu primeiro romance, “Terras proibidas: a saga do café no Vale do Paraíba do Sul”. A partir daí, parte da minha pesquisa de quase 20 anos e mil páginas se transformou no “Fábrica de Mentiras”. Ele se volta para a história da descendência do barão, primas de Eufrásia, e sua vida longe das fazendas de café, suas aventuras amorosas e ousadias financeiras, como uma pioneira da liberação feminina — explica Luiza.
Nascida e criada em uma sociedade patriarcal erguida sobre o trabalho escravo, Eufrásia flertou com o abolicionismo (através de sua relação com Nabuco, de quem, dizem, recebeu inúmeras cartas de amor que levaria junto com ela em seu caixão) e ousou se posicionar como mulher e dona de suas vontades. Em Paris, foi mulher pioneira em investir na Bolsa de Valores. Circulou entre milionários, empresários, artistas. Ocupou seu lugar no mundo. Viveu.
A opção de Luiza pela versão romanceada foi feita ainda no nascimento do projeto. Entre outros motivos, porque há uma produção consistente que analisa Eufrásia e sua época pela perspectiva exclusivamente histórica. Luíza preferiu a imersão nos relatos de família, base de seu romance:
— Creio que, se obtive alguma originalidade de documentação e interpretação da história e das origens de Eufrásia, foi graças às muitas horas de gravação que fiz com minha tia Laura, que, menina, ainda a conheceu em Paris, e através de histórias que ouvia na família ou pessoas que conheceram muito bem o ambiente em que ela viveu. Foram duas décadas de pesquisa. Isso significa que nenhum dado histórico ou personagem histórica foi alterado. O lado romanesco de ambos os livros se concentra na parte narrativa: diálogos, personagens secundários, imaginação sobre alguns eventos — explica.
Luciana Savaget também é prima distante de Eufrásia. Seu filme ainda está em fase de captação de recursos.
— Já gravamos quatro entrevistados importantes. Inclusive dois primos da Eufrásia, que são centenários e conheceram a prima quando pequenos. Eufrásia faz parte da minha história de vida. Meu avô Edgard Teixeira Leite, neto do barão de Vassouras, nos contava com entusiasmo a façanhas desta extraordinária e ousada mulher. Tenho como missão resgatar a sua história — conta.
Luciana lembra que o Vale do Café no tempo do Império era uma das regiões mais preciosas do Brasil.
— Rica em dinheiro, em cultura… tudo girava em torno da produção do café. Contextualizaremos o Vale do Café, onde viveram os Teixeira Leite e onde nasceu Eufrásia. No seu testamento, ela destinou sua fortuna à cidade de Vassouras. Quero resgatar a memória da maior investidora brasileira, ousada, corajosa, moderna, que sabia como ninguém o significado da palavra futuro. Eufrásia deixa um legado de coragem, de enfrentamento e posicionamento da mulher numa sociedade patriarcal. Colocou Vassouras no mundo, não só com a construção das linhas férreas, mas doando sua fortuna para construção de hospitais, orfanato, asilo, educação — complementa Luciana.
Luiza Lobo dá uma dimensão do importante legado de Eufrásia — inclusive a decisão de permanecer solteira.
— Do meu ponto de vista, ela escolheu seu destino e não quis se casar por querer viver em Paris, longe de um país escravocrata, no qual seu pai angariou sua fortuna ligada a negócios do café. Investir na bolsa de Paris, a mais importante do mundo de então, foi uma forma de “lavar o dinheiro” da abolição, mas também ocupar o seu tempo, investindo ainda numa belíssima pinacoteca em Paris, de pintores modernistas. Joaquim Nabuco era abolicionista, mas queria fazer carreira literária e depois política no Brasil. Sendo assim, suas vidas eram incompatíveis, e foi isso que tentei mostrar no livro. Que Eufrásia tomou as rédeas do seu destino e viveu como desejou. Tornou-se uma feminista ativa, embora nunca tivesse consciência do papel que lhe foi atribuído no nosso século — diz a escritora.
Se na sua época Eufrásia foi vista por muitos como uma “uma noivinha abandonada”, hoje o jogo virou.
— Ela é símbolo de independência da mulher, libertou seus poucos escravos em 1884, quatro anos antes da abolição, e deixou seus bens para uma cidade. Não sabemos quais serão nossos próximos mitos, heróis e heroínas de amanhã. A história das mentalidades, do cotidiano ou dos vencidos tem feito muito para ir além da História oficial e mergulhar no íntimo das pessoas mais significativas para a nossa época. Com essa compreensão, podemos caminhar e melhorar a nossa sociedade — completa Luiza.
Admirável história de Eufrasia e o livro “Fábrica de mentiras: do Vale do Café ao Arco do Triunfo”, tenho interesse.