Como o comerciante de origem judaica driblou a intolerância e conseguiu ser enterrado em território cristão na Vassouras do século XIX
Por Chico Gonzaga
“Quero morrer como um judeu”.
Quando Benjamin Benatar — um daqueles sujeitos com a capacidade inesgotável de se adaptar às circunstâncias — pronunciou as cinco palavrinhas, no leito de morte, surpreendeu meia Vassouras do século XIX: o comerciante, que viveu sua vida no Brasil quase como um cristão de sacristia, não só era judeu, como queria ser enterrado como tal. O pedido, além da surpresa da revelação, levava a outro problema: não havia cemitério destinado aos judeus na cidade — e nem em parte alguma próximo dali.
Apesar das tentativas de convencê-lo do contrário, Benatar permaneceu irredutível. O único cemitério disponível em Vassouras era exclusivo para católicos e, para ser enterrado lá, Benatar teria que se converter. Ele negou mais uma vez, permanecendo fiel ao seu “erro”. Após sua morte, a família fez uma solicitação ao tribunal eclesiástico, mas teve o pedido de sepultamento negado. Estava sacramentada a “segunda morte” de Benatar.
Benjamin Benatar era judeu marroquino (ou de Gibraltar) e teria chegado ao Brasil pela Bahia, em 1829, mas seus primeiros registros só aparecem no Rio de Janeiro. Foi na então capital do império que ele conheceu sua futura esposa Brites Maria da Costa — de família católica, apostólica, romana. Acertaram rapidamente o matrimônio, mas, para realização do casamento nos conformes do catolicismno, o casal teria que escapar das rígidas regras da igreja. O escape foi Vassouras:
— Benatar conhece Brites no Rio de Janeiro, se apaixonam, mas não poderiam casar na mesma cidade. Para isso, ele teria que ir à igreja e perjurar, tudo como mandava o sagrado ritual religioso e Brites não exigiu isso dele — conta arquiteta Isabel Rocha, autora de “Benjamin Benatar: um pouco da vida social de Vassouras”, livro que passa a limpo os meandros da conservadora sociedade vassourense da época. — A solução foi vender tudo que tinham no Rio. Ele então partiu para Vassouras, sozinho. Depois de um tempo Brites também subiu a Serra.
Com o passar dos anos, Benatar foi se integrando aos costumes de Vassouras. Dono de um botequim/bilhar, adquiriu ainda um salão de festas e promovia bailes frequentados pela alta sociedade local. Tinha amigos influentes, circulava por vários salões, tinha boa conversa, era querido pelas pessoas que importavam. Esse prestígio refletiu na escolha dos padrinhos de seus filhos, sempre gente da nata da sociedade. Sim, os oito filhos de Benatar foram batizados direitinho na igreja.
Vassouras vivia o auge do comércio de café, o dinheiro circulava a rodo e o botequim de Benatar transformou-se em point da época, juntando o alto escalão do baronato (com seus herdeiros), comerciantes em trânsito, caçadores de fortuna, damas de variadas reputações e artistas estrangeiros em visita à região. Um pouco do espírito desse tempo pode ser notado no rol de bens inventariados no estabelecimento por ocasião da morte de Benatar:
– 108 garrafas de vinho Bordeaux
– 24 garrafas de congnac.
– 22 garrafas de champagne
– 57 garrafas de cerveja
– 12 garrafas de absinto
– 15 frascos de geleia
– 9 latas de peixe
-135 garrafas de vinho do porto
– 2 vidros de ostras
Obs: As bebidas alcoólicas eram identificadas com a deliciosa alcunha de “Líquidos Espirituosos”.
Benjamin Benatar viveu uma vida de aventuras – sua morte não seria diferente.
Quem tem padrinho morre pagão?
Na década de 1850, enterros deixaram de ser feitos no interior das igrejas e os cemitérios públicos recém-criados eram de uso exclusivo dos católicos, religião oficial do Estado. Os seguidores de outros cultos poderiam ter cemitérios particulares, desde que autorizados pelo governo. Em meados do século XIX, não havia comunidades judaicas no Brasil com força suficiente para obter, sozinhas, essa autorização.
No Rio de Janeiro, os judeus se juntaram aos protestantes e compraram terrenos na região do Caju e da Lagoa Rodrigo de Freitas (o futuro São João Batista). Antes disso, enterros de judeus só podiam ser feitos no cemitério dos Ingleses, no Morro da Providência, com permissão destes.
Apesar de nunca ter se convertido oficialmente ao catolicismo, Benatar seguia alguns costumes da religião, como frequentar a missa e fazer o sinal da cruz quando passava na porta da igreja — mas não comungava. Mesmo mantendo as aparências, difícil acreditar que as pessoas mais próximas não desconfiassem da sua verdadeira religião. O próprio padre Manoel José dos Reis, que iria negar o pedido de sepultamento, era um grande amigo, companheiro de prosa e de copo.
— Benatar viveu os costumes do Brasil, assim como os filhos. Mas quando você está na beira da morte quer ter o gostinho de lembrar dos seus pais, das suas origens, da sua trajetória, das coisas importantes que teve que largar no meio do caminho. Era um último desejo dele e esse último desejo dele eles não podiam negar — especula Isabel.
Benjamin Benatar morreu no dia 15 de abril de 1859, sem que houvesse uma solução para seu sepultamento. Com o veto da Cúria ao uso do cemitério católico, foram oito dias à espera de um destino para o corpo. Diante da comoção gerada entre seus velhos companheiros, entrou em cena Pedro Correia e Castro, o Barão do Tinguá, grande benfeitor da Santa Casa de Misericórdia e padrinho de um dos seus filhos. Com as ordens do Barão — que apelou ao espírito de tolerância e amizade que regia a instituição — ficou decidido que o corpo seria sepultado nos jardins da casa.
E foi.
O Memorial
Em meados dos anos 1980, o historiador alemão Egon Wolff descobriria, em um terreno situado nos fundos do Asilo Barão do Amparo, em Vassouras, o jazigo de dois judeus que haviam falecido naquela cidade em meados do século XIX. O primeiro era Benatar. O segundo era Morluf Levy, de ascendência marroquina, que havia falecido em 1879 e obtivera o mesmo destino dado a Benatar depois de morto. A existência dos jazigos foi divulgada por Wolff e sua mulher, Frida, em março de 1986, em palestra no Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro.
Em 1990, os Wolff se juntaram a Luiz Benyosef, diretor do Observatório Magnético de Vassouras, em um projeto de criação de um memorial que celebraria, a partir do episódio de Benatar, uma história de tolerância e compaixão. Mais tarde o presidente da Fundação Universitária Severino Sombra (atual Universidade de Vassouras), Severino Sombra, entrou no circuito. O paisagista Roberto Burle Marx (1909-1994), amigo de Benyosef e convocado informalmente, ficou entusiasmado com a ideia e aceitou o trabalho de formular o paisagismo do lugar.
O Memorial elaborado por Marx (em parceria com Claudia Rosier) partiu da ideia de comunhão entre os povos e seria composto por canteiros, ornamentados com flores do serrado brasileiro, em formato de casulos. No casulo central as duas pedras tumulares. Além dos túmulos de Benatar e Morluf Levy, Egon Wolff, que morreria em 1991, também está sepultado ali. O projeto do memorial foi destaque em publicação editada pelo Museu Judaico de Nova York no ano de 2016.
— O conceito era fazer uma menção à estrutura de uma colmeia, remetendo à ideia de um casulo, local de morada. A casa de todos nós — explica Júlio Ono, que administra o escritório de Burle Marx desde a morte do paisagista.
Integrar perfeitamente o núcleo do memorial – com seus casulos, jazigos e vegetação impactante – ao restante do terreno e aos jardins da casa é uma das preocupações do arquiteto Marcos Sá, responsável pelo projeto de paisagismo do Museu:
— O conceito do projeto geral foi manter a autonomia do Memorial, preservando o seu protagonismo por meio da criação de um entorno mais natural, mais homogêneo e simples, mas pleno de referências à história e aos aspectos visuais existentes no local.
É esse Memorial, repleto de histórias, inaugurado em 1994 e que há mais de dez anos sofre com o abandono que, restaurado e tinindo de novo, em breve será entregue aos visitantes do Museu Vila de Vassouras.
Belas histórias. O Museu promete ser uma grande atração.
Bela, impactante e importante história! Como faz bem saber que será preservada para que os brasileiros possam sempre lembrar-se que paz e harmonia, se fazem na convivência entre as pessoas, independentes de suas crenças, seus saldos bancários, suas origens. Esperarei ansioso, a inauguração do Museu para fruir in loco o impacto dessa história e de outras a serem ainda resgatadas em Vassouras.
Mais um tesouro que ressurge do vastíssimo patrimônio histórico cultural da região do Vale do Café que, nos últimos 40 anos deu início ao longo percurso de retomada do protagonismo que lhe compete, no cenário da civilização brasileira. Mérito de iluminados proprietários que restauraram e abriram antigas fazendas à pública visitação, criando no Vale o maior conjunto de palácios imperiais abertos, de toda a América Latina a 2 hs do Centro do Rio. Grande mérito também do Instituto Preservale original que, há 3 décadas atrás, estimulou e promoveu o consórcio, com foco no “turismo de patrimônio”, como nos ensina, desde então, sua principal liderança, Sonia Mattos. Mérito também do Festival do Vale do Café, de Cristina Braga, Turíbio Santos e Backstage que, nos últimos 20 anos, trouxeram multidões de aficionados ao gozo dos encantos deste Vale. Surpreendentemente, em tempos tão obscuros para nossa tradição cultural, ressurge o palacete do Barão do Amparo como Museu da Vila de Vassouras, por obra do empreendedorismo privado que resgata os tesouros da região. BENDITOS SEJAM todos aqueles que comungam deste glorioso ressurgimento.