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A voz ancestral do Brasil

Cultura

Com as raízes enfiadas no Vale do Paraíba, o quintal de Clementina de Jesus era o mundo inteiro e sua arte, a expressão de toda região

Nascida em Valença, há 120 anos, Clementina de Jesus é arte e raiz para todo o Vale do Café; leia a reportagem no nosso blog | Foto: Arquivo/Agência O Globo/20-11-1975

Nascida em Valença, há 120 anos, Clementina de Jesus é arte e raiz para todo o Vale do Café

Por João Carlos Pedroso

“Clementina, cadê você?” Cento e vinte anos depois de sua entrada definitiva no nosso terreiro, Quelé (como Clementina de Jesus era conhecida no universo dos tambores e batuques) está em toda parte, em qualquer lugar onde o samba, o jongo e a cultura de matriz africana estejam.

Muito mais do que uma cantora, essa entidade nascida em Valença (Carambita, para ser mais exato) nos primeiros respiros do século XX, em 7 de fevereiro de 1901, e apresentada ao mundo por Hermínio Bello de Carvalho, já sexagenária, é a mais autêntica tradução de que cada quintal é do tamanho do Universo. Sua voz, que parecia trazer todas as vozes (dores, alegrias, festas, prantos, tambores e lutas) em uma só voz, ecoou por toda parte. O quintal de Clementina, as raízes enfiadas nas terras do Vale do Paraíba, é o mundo inteiro, sua arte era a expressão de toda região.

— Clementina de Jesus é a grande voz ancestral do Brasil. E quando falo ancestral, acho importante fazer uma distinção entre o ancestral e o antigo. Porque tudo que é ancestral só é ancestral porque continua fazendo sentido no presente, fala com o presente e é contemporâneo. Então a Clementina tem essa voz que atravessa o tempo, que mergulha na profundidade das experiências afro-diaspóricas no Brasil, sobretudo Bantu, aquelas sonoridades que vem da região do Congo, de Angola, que são definidas sobretudo no Vale do Paraíba do Rio de Janeiro, na cultura do jongo, das ladainhas, das chibas, pontos de curimã — define o historiador Luiz Antônio Simas.

Simas diz que Clementina traz tudo isso (as raízes, a dança, a voz, a roda, a ancestralidade) grudado a ela, se tornando uma verdadeira biblioteca ritmada dessa cultura. E mais: funciona como ponte que a transmite através dos tempos.

— Escrevi a apresentação de um livro sobre ela e falei sobre esse papel dela, de transmitir a tradição e sabedoria com seus cantos, como na cultura Mandinka. Assim isso sobrevive e permanece.

Mas o historiador faz questão de deixar claro que as qualidades da Quelé não se limitam às suas capacidades enciclopédicas e difusoras. Ele completa:

— Além disso, era uma excelente cantora. Tinha extensão vocal muito grande, uma capacidade rítmica idem. Acho importante dizer isso também. Porque a gente fala muito da ancestralidade, da sabedoria e relega um pouco o fato de que era uma grande cantora, com um vozeirão, que cantava de forma sublime. Então ela é esse elo entre os batuques que atravessam o mar na diáspora negreira, se redefinem de múltiplas maneiras na América e estão aí. O canto de Clementina permanece. E por isso pode ser considerado um grande canto da ancestralidade.

Foi o que percebeu o então jovem poeta Hermínio Bello de Carvalho ao escutar aquela voz única entre as mesas da Taberna Glória, no Rio de Janeiro — Clementina deixou Valença aos 8 anos, se mudando para Oswaldo Cruz, um dos berços do samba carioca.

— Eu não “descobri” Clementina, como gostam de dizer. Apenas prestei atenção no que já estava lá, pronto e precioso — gosta de sempre deixar claro Hermínio, que lançou a Quelé primeiro em um show da série Menestrel (1964), que misturava popular e erudito, acompanhada de César Farias (pai de Paulinho da Viola).

Clementina fez sua estreia oficial movida a goles e mais goles de Cinzano. Um ano depois, se consagrava no histórico musical “Rosa de Ouro”, ao lado de Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Anescarzinho e Jair do Cavaquinho, entre outros.

Clementina de Jesus, durante show, em foto de novembro de 1984 | Foto: Hipólito Pereira/Agência O Globo

Neta de escravos, filha de uma parteira que lhe passou a tradição oral de origem africana e de um carpinteiro e pedreiro, mas que era também violeiro e capoeirista — ambos só escaparam do cativeiro por conta da Lei do Ventre Livre — Clementina ainda adquiriu mais intimidade com a cultura de origem afro por conta da proximidade geográfica: depois da infância no Vale do Café, imerso em tradição quilombola, foi embalada no berço do samba e testemunha ocular, entre outras coisas, do nascimento de sua Portela em Oswaldo Cruz (1923) – o bairro é vizinho da Serrinha, em Madureira, uma das regiões que mais recebeu negros do Vale do Paraíba no “espalhamento” pós abolição.

Clementina sempre trabalhou duro, especialmente como empregada doméstica, até seu “descobrimento”. Mesmo depois dele, com discos gravados e respeito assegurado e crescente, nunca foi uma grande vendedora de discos ou estrela da canção — no sentido de arrastar multidões. Mas marcou e direcionou a carreira de inúmeros artistas, como João Bosco, Milton Nascimento, Clara Nunes, Alceu Valença. João Nogueira, Martinho da Vila e muitos outros.

Além da influência em sua própria terra, conseguiu ainda fazer o caminho inverso da ponte cultural e brilhar no continente dos seus antepassados, como lembra um emocionado Haroldo Costa.

— Ela é um raro caso de volta às origens através de cantigas ancestrais. E isso aconteceu no I Festival de Artes Negras realizado em Dacar em 1966. Clementina fez parte da delegação brasileira, da qual participavam ainda Elizeth Cardoso, Ataulfo Alves, Camafeu de Oxóssi, Mestre Pastinha, Som Três (liderado por César Camargo Mariano) e o trombonista Raul de Barros. Fizemos (eu dirigia o show) duas apresentações, uma no Theatre Daniel Soriano e outra no Stade de L’Amitie, para um público de 20 mil pessoas. A grande parte de estudantes da Nigéria, Costa do Marfim, Togo, Burkina Faso e outros vizinhos. O show foi muito animado com muito samba etc. Mas quando Clementina entrou e começou a cantar curimãs e pontos de candomblé e umbanda, a integração foi total. Ela cantava, eles respondiam. Foi um encantamento para todo mundo. O elo perdido se encontrava — lembra.

Assim como antes a própria Clementina havia se encontrado com sua vocação natural, aquela para a qual foi talhada desde a primeira infância e ao longo de anos imersa em matrizes africanas de primeira mão. A vocação definida com precisão nos versos de Candeia, ele mesmo outro arquiteto da ponte África-Brasil:

“Não vadeia, Clementina/
Fui feita pra vadiar/ Eu vou
Vou vadiar, vou vadiar, vou vadiar/
Eu vou”

A letra completa, que ainda mostrava preocupação com a ecologia e o fantasma da energia nuclear, trazia no seu refrão um resumo da trajetória de Quelé: à vida que insistia em dizer não, ela respondia com atitude: a força da mulher que tinha consciência da sua história, de onde veio e onde queria ir.

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Comentário [1]

  1. Maria Cordelia Soares Machado disse:

    Texto precioso para maior compreensão do valor como cantora e como figura histórica de Clementina de Jesus!

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